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Psicose ordinária. Interview a Glória Maron (EBP)

Para começar, considero que J.-A. Miller fez uma aposta certeira ao prever que a introdução do sintagma psicose ordinária poderia provocar eco no clínico. Suponho que podemos medir a efetividade de sua aplicação quando recolhemos esses efeitos na prática analítica e nas contribuições epistêmicas de analistas do Campo Freudiano.

Quando se coloca em discussão um caso de difícil inclusão em alguma categoria diagnóstica, penso que o analista lacaniano se vale de uma orientação que leva em consideração o real da clínica, permitindo acolher e abordar manifestações clínicas não estandardizadas, sutis e discretas, mas que sugerem um funcionamento psicótico.

Considero crucial a recomendação de Miller quando advertiu que a psicose ordinária está longe de servir de refúgio ao não saber. Ao contrário, diante de um caso com indícios de psicose ordinária, o analista é convocado a ir mais longe, e reencontrar a clínica psiquiátrica clássica e a psicanalítica clássica. Em se tratando da prática institucional, tem sido uma boa provocação revisitar a psiquiatria clínica. Nas instituições de saúde mental onde estive e onde vigoram as classificações diagnósticas do DSM e CID, uma noção como a da psicose ordinária foi recebida com estranhamento e surpresa, não muito diferente do que ocorreu entre os analistas. Não deixa de ser um bom sinal quando, nessas instituições, algo surpreende. Mais do que o uso do significante, tem sido de grande valor as contribuições extraídas da investigação e do debate introduzidos por essa noção da psicose ordinária. Diante de casos diagnosticados e tratados nas instituições de saúde mental como transtornos relacionados a substâncias, ou mesmo classificados como transtorno de personalidade, muitas vezes também nomeados como borderline, o analista tem podido contribuir, reintroduzindo, no debate clínico, as categorias da neurose e da psicose, tão em desuso na psiquiatria. No entanto, a fluidez implícita na noção de psicose ordinária não se confunde com o desordenamento verificado nos sistemas classificatórios da psiquiatria contemporânea. É interessante observar que, ao apreender na nossa prática um caso como psicose ordinária, não abrimos mão, em nenhum momento, de nos referir ao que aprendemos com Lacan como próprio do campo das psicoses. Em primeiro lugar, partimos da relação da psicose com a linguagem; mais especificamente, que o modo de estar na linguagem se relaciona com o modo estar no mundo. Na psicose, nos guiamos por coordenadas clínicas que nos ajudam a localizar a presença exuberante ou discreta de fenômenos de ruptura do laço social, fenômenos de corpo e de linguagem. Do lado da neurose, além da relação com o Nome do Pai (NP), nos apoiamos em provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade1.

Suponho que o próprio fato clínico de defrontarmos casos em que a função paterna não opera nos leva a interrogar outras modalidades de tratar o gozo que não se valem da função normativa do significante fálico. Se o NP é específico e restrito à neurose, para todo falante existe uma dimensão sem nome, indizível. Para além do NP, condicionador do discurso estabelecido, nos guiamos por uma dimensão do gozo que exclui o sentido. Parece bastante evidente que se ampliou o campo da investigação clínica quando, em lugar do acento na foraclusão de um significante específico, substituímos o NP como referência universal pelo axioma da foraclusão generalizada. A falha aberta no coração do simbólico, ou seja, uma falha na denotação da linguagem, deixa de ser exclusiva da psicose. Todos os falantes são iguais diante da foraclusão generalizada da linguagem já que todo falasser se confronta com uma dimensão impossível ao articular as palavras com o indizível do gozo. Ou seja, todo falasser está às voltas com o possível e o impossível dessa articulação. Com a pluralização dos NP, Lacan abriu novos horizontes para a psicanálise, colocando em destaque uma variedade de respostas possíveis à foraclusão; do recurso à topologia, extraímos, do ensino de Lacan, as coordenadas que nos orientam a investigar a maneira particular como estão enodados, em cada caso, os registros real, simbólico e imaginário. A psicose ordinária é tributária das manifestações clínicas da época da inconsistência do Outro.

Identificamos uma psicose não só pela conjuntura dramática do desencadeamento, efeito do encontro com Um Pai, un père, significante ímpar, inusitado, fora de qualquer inscrição e significação, deixando a céu aberto a lacuna foraclusiva inaugural. Com frequência, encontramos psicóticos que se confundem na paisagem de uma suposta normalidade, por exemplo, quando se identificam a algum S1 que possibilita a vinculação e pertencimento a um grupo social. É frequente um traço ideal que porte um forte apelo e impacto social, como grupos de vítimas de algum tipo de violência, ou defesa da causa LGBT etc. Ordinariamente, nos defrontamos com outros índices de psicose não desencadeada – maneira como cada um experimenta seu corpo (externalidade corporal), como experimenta o mundo que o cerca (externalidade social) e como se relaciona com suas ideias (externalidade subjetiva)2 – que denotam desordens na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito.

Há casos em que se verifica uma errância por diferentes semblantes em relação aos quais o sujeito se engancha e se desengancha. Não raro, é pela suplência que faz reparo ao defeito no enodamento dos três registros, real, simbólico e imaginário, que situamos uma psicose não desencadeada. Assim como podemos localizar que o elemento que assegura uma amarração estabilizadora pode tornar-se, ao mesmo tempo, vulnerável à desestabilização em função de alguma contingência. “Eu me amarro” é uma expressão brasileira usada quando se gosta muito de algo ou alguém. No caso de um analisante, essa expressão é literal, uma vez que tocar um instrumento desde criança e torná-lo um ofício funciona como amarração. Atualmente, acompanhando os elementos que funcionam como estabilizadores e desestabilizadores para esse analisante, construir uma distância possível de um ponto experimentado por ele como limite do insuportável, ou seja, construir “uma medida sob medida” para barrar e subtrair o excesso de gozo quando algo do real se aproxima, tem sido uma direção para o tratamento de uma psicose ordinária sob transferência.

Verifico que permanece inconclusivo o debate em torno das psicoses ordinárias no que tange à questão do desencadeamento. Há suplências, construídas ou não em análise, que impedem ou adiam o desencadeamento e, quanto a isso, parece haver um consenso. É definitivo? Interrogo se é possível sustentar que não haverá a possibilidade do advento de uma psicose desencadear quando consideramos que a contingência pode incidir tanto para enlaçar o real em jogo na vida de um psicótico, assim como pode produzir uma ruptura. Lembro Lacan, quando afirmou que a loucura é uma virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência3. A meu ver, é uma questão em aberto e, por ora, considero que quando estamos no campo das psicoses, extraordinária ou ordinária, me oriento por soluções sinthomáticas definitivas enquanto duram.

Para concluir

Na atualidade, vivemos os efeitos das mutações na ordem simbólica e não é incomum verificarmos a instabilidade dos laços contemporâneos. Não faltam exemplos que rapidamente se tornam ordinários e fazem parte do nosso cotidiano, sem necessariamente tratar-se de psicoses. Recentemente, li uma entrevista num jornal de grande circulação em que um pesquisador, apresentado como web ativista e estudioso da Cultura Digital, afirma que, em média, uma pessoa com smartphone tem 120 nanotédios por dia4. Segundo Giardelli, essa medida tem sido feita tomando como base o número de vezes que uma pessoa pega o celular ou tablet para olhar uma mídia social, quando alguma situação em que está envolvida não está lhe agradando. Demora-se 30 a 40 segundos para entender essa transição e, depois que se conecta a uma mídia social, demora também para voltar a se conectar com o que estava fazendo antes. Para ele, a chamada geração dos distraídos (sic) experimenta aumento da ansiedade e outras síndromes decorrentes do “mau uso da tecnologia” (sic). Não vou me estender sobre os efeitos da relação do sujeito contemporâneo com os objetos e gadgets da cultura, nem me deter nessa medida de avaliação formulada pelo Outro da tecnologia.

Muito tem se falado sobre a incidência da tecnologia na subjetividade e nos modos de gozo, especialmente a partir dos anos 80, que corresponde à entrada da tecnologia e o uso de computadores em massa. As consequências dessas mudanças produzidas na cultura não deixam dúvidas sobre mutações nos laços sociais, não excluindo aquele que interessa particularmente ao analista, o laço transferencial. A investigação em torno da psicose ordinária desencadeada por Miller nos anos 90 alargou a apreensão da variedade dos modos do falasser se conectar e se desconectar com o corpo, com os objetos, com o Outro, seja no campo da neurose ou no da psicose. A modalidade como cada falasser amarra os fios invisíveis da existência à invenção de um lugar no mundo convoca o analista a estar conectado à variedade de nuances que podem emergir no tratamento sob transferência.

1 Miller, J.-A.”Efeito do Retorno à Psicose Ordinária”. Em: Batista, Maria do Carmo; Laia, Sérgio (organizadores). A Psicose Ordinária. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012, p. 417.

2 Ibid. p. 399-418.

3 Lacan. J. “Formulações sobre a causalidade psíquica”. Em: ___. Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998, p. 177.

4 Entrevista dada por Gil Guardelli ao Jornal O Globo, na coluna chamada “Conte algo que não sei” em 04 de setembro de 2017.