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Uma nova potência, refinada e enriquecida

“É próprio da ordem, ali onde existe um mínimo dela, não se ter que apreciá-la, já que está estabelecida” (Outros escritos, p. 531). Tomarei essa frase de Televisão como peça solta de onde partir, pois nela Lacan contrapõe a ordem – edípica, do significante – ao gozo, aquilo que o significante não consegue distinguir nem fixar. O gozo é a antítese da ordem, e se a ordem se articula à falta, o gozo está mais para o lado do buraco, como esclareceu Jacques-Alain Miller em seu curso “Illuminations profanes”, de 2005-2006. Sabemos o que pode ocorrer na psicose quando o sujeito encontra esse buraco não delimitado pela falta: é a passagem ao ato, que pode chegar às formas mais extremas, aquelas de destruição do “mundo” (como ocorre nos massacres indiscriminados, no modelo Columbine) e de autodestruição (la mort du sujet da qual fala Lacan).

Porém, sabemos que na psicose, antes que seja desencadeada, também existem outros modos de enfrentar o problema. Podemos inclusive considerar certas formas de psicose como modalidades precisas de tratamento do buraco. Os exemplos canônicos são Joyce e Cantor. O primeiro realiza um tratamento do buraco através da literatura, graças à qual se faz um nome, o segundo o realiza através da matemática, por meio da qual, e aqui está sua extraordinária acrobacia, reconstrói uma ordem após ter rompido a enumerabilidade do infinito.

Se Joyce tece as palavras numa desordem do sentido, que se adelgaça e desaparece nas mirabolantes concatenações verbais, Cantor reordena o infinito em um crescendo de infinitos nos quais nada é tudo, porque não há um limite último. Em certo sentido, podemos dizer que Joyce e Cantor conseguem nos fazer degustar uma nova ordem, reconstruindo-a com os meios da desordem.

Todo delírio, no fundo, é a reconstrução de uma ordem do mundo através do movimento de sua destruição, mas é uma ordem fora do discurso, da qual não conseguimos participar com nosso “senso comum”. Joyce e Cantor, mesmo infringindo o senso comum, nos fazem entrar em sua ordem insólita por outras vias, que nos incluem, ampliando, assim, o espaço de nosso pensamento. Os grandes criadores sabem conduzir a invenção psicótica a um nível no qual, ao invés de desviar para fora do discurso, eleva o discurso corrente a uma nova potência, refinada e enriquecida.

 

(Tradução: Maria do Carmo Dias Batista)